Por vezes, nas nossas vidas, somos tomados de assalto pelo óbvio. Ainda que não invalida que não possa ter estado sempre a um palmo do nosso nariz, mas onde alguém, inesperadamente, o fez visível à nossa compreensão. Ou uma circunstância imprevisível que abriu fendas num bloqueio qualquer por onde agora a luz do entendimento pôde francamente iluminar.
E não poucas vezes, numa assombrosa simplicidade, por mera mudança de perspectiva: num determinado espaço-tempo, um novo ângulo de percepção. Obviamente, de variáveis consideráveis.
Nesta última hipótese se encaixa o caso passado com um intelectual, escritor conhecido da praça mediática portuguesa, que iremos transcrever mais abaixo.
A árvore (como todas as plantas em geral) é companheira fiel, mas silenciosa (aparentemente), do nosso dia a dia, integrando-se naturalmente no ambiente familiar que nos envolve. Segue-nos, benfazeja presença, até mesmo entre as gigantescas montanhas de cimento dos grandes complexos urbanos. Por tudo e mais alguma coisa, somos-lhe devedores de uma gratidão sem conta.
Acontece, porém, que existem civilizações de outras paragens que ainda lhe reconhece mais virtudes do que aquelas, por exemplo, que habitualmente o ocidental comum já esqueceu. Talvez muito por culpa das vicissitudes histórico-geográficas pelas quais passou e ainda passa; a haver acasos. Assim, à sua volta, neste planeta de tão singular contradições, são cada vez mais frequentes os atropelos a tudo no que a isso diz respeito. Uma espiral vertiginosa de amnésia contagiosa, generalizada.
O reconhecimento, de que ela interage connosco cognitiva, volitiva e afectivamente por parte da comunidade científica, é um facto. Estudos laboratoriais de comprovada idoneidade têm-no como um dado adquirido. Contudo, o obstáculo que se levanta, por má fortuna, é estarem adormecidos nas suas gavetas. A pressão do status quo da onda de desabridas conveniências e os tiques de vergonha ou vaidade costumeiras levam vantagem por ora. E o tempo, a sair dessa avoenga letargia, arrasta-se. Não percamos a paciência, no entanto. E, depois, haverá sempre a esperança de uma sábia clarividência global vindoura. Aguardemos! Serenamente. …
Passemos agora à entrevista que nos tocou. Realçamos a sensibilidade filigrânica da delicadeza na descrição do mundo da árvore. A escolha genial da carga de cada palavra. Ao milímetro. Ergue-se o imaginário e embrenha-se-nos uma atmosfera nostálgica. Etérica. Embalamos nas asas das árvores das nossas vidas.
“Acho que as árvores falam!”
Entrevista * O escritor que gosta de ficar sentado a observar as árvores:
“Fico ali a ver as folhas. Acho que falam! …”
Uma viagem à Indonésia fê-lo passar a gostar de observar árvores. Gosta de registar os movimentos das folhas, de lhes estudar o tronco, as ramagens e acha mesmo que falam. Diz que não é um ”ecologista da cidade”, não imagina a natureza intocada, mas nunca escreveu nada no tronco de uma árvore.
Já plantou uma árvore?
Já. Muitas. Amendoeiras, sobretudo. E também macieiras, duas cerejeiras e uma camélia. A camélia é mais divertida porque também se chama japoneira na minha terra. Plantei amendoeiras e macieiras com o meu avô, no Douro. Devia ter 14 ou 15 anos, não prestei muita atenção nem dei muita importância.
Porquê?
Dava muito trabalho. Estava a ajudar o meu avô, não estava a fazer literatura…
Como começou a observar árvores?
Lembro-me de na Indonésia ir visitar um jardim botânico. As pessoas saíam da cidade, subiam pela montanha, de carro, e iam ver árvores. Sentavam-se debaixo das árvores, diante de um lago, a olhar para as árvores em redor. Almoçavam na relva, passeavam e, depois, sentavam–se de novo diante das árvores, a olhar. Aquilo era uma coisa um pouco estranha para mim – e perguntei a alguém o que as pessoas estavam ali a fazer. O homem olhou para mim muito admirado:
“Estão a ver as árvores! ”
Eu via as árvores, durante a minha infância. Eram carvalhos, castanheiros, pinheiros, florestas muito densas na terra da minha mãe, ou os picos das serras (a serra do Reboredo, uma das mais bonitas de Portugal) cheias de zimbros e azinho, na terra de meu pai. Sabia os nomes, sabia distingui-las, até organizei vários herbários. Mas nunca tinha assistido àquele espectáculo enternecedor de ver as pessoas (em família ou solitárias) sentadas diante das árvores. Só a vê–las, a observá–las, a ver–lhes a folhagem, a pressentir a passagem do vento. Desde essa altura passei a ser um observador de árvores.
E também cumpre esse ritual, também fica sentado diante das árvores?
Sim! Nunca tinha reparado em todas as árvores dos jardins da Gulbenkian, por exemplo. É um momento de grande tranquilidade, esse: sentarmo–nos, ficarmos ali a registar os movimentos das folhas das árvores, a estudar o tronco, as ramagens, a passagem do tempo. E deixa–nos muito tranquilos.
Que aspectos lhe chamam a atenção?
O porte, a folhagem, o silêncio, uma melodia qualquer. Acho que falam. As pessoas devem achar isso ridículo, mas gosto muito de passar entre árvores. A terra de minha mãe, ao lado de Vinhais (Ousilhão), tem uma grande concentração de castanheiros, carvalhos, freixos, choupos – além de ser uma carta botânica, é uma carta geográfica sentimental.
Já escreveu no tronco de alguma árvore?
Parece impossível, mas nunca escrevi nada. Aquelas coisas dos corações? Nunca. Acho que escreveria uma data, para uns anos depois ver como tinha evoluído a grafia…
Já inventou histórias debaixo de uma árvore?
Já, todos inventamos. Vemos uma frase gravada no tronco, um corte feito com um canivete ou um machado. Não sou um “ecologista de cidade”, não imagino a natureza intocada.
Qual é a árvore da sua vida?
Tenho várias. Carvalhos necessariamente. Os musgos que sobem pelos carvalhos. Os castanheiros. Os freixos. Em Lisboa há muitos jacarandás e, acho graça, são uma espécie de invasão de fluoxetina para a cidade… um Prozac. A laurissilva madeirense. As criptomérias açorianas (que são japonesas…). Os choupos à beira dos rios. São as árvores essenciais.
* Francisco José Viegas é um escritor premiado e excelente cozinheiro, já foi jornalista, agora é colunista, director da Ler e director editorial da Quetzal. Com 48 anos, acaba de se estrear na literatura infantil com Se eu fosse… Nacionalidades. Por Maria Inês Almeida.
Revista Sábado (Semanário), Nº 324 – 15 A 21 DE JULHO DE 2010, páginas 1, 2 e 3 do Suplemento PRIMEIRA ESCOLHA.